CONTOS DO PECE - PÁGINA 01

CONTOS NESTA PÁGINA:

01 - BILHETINHO NA CARTEIRA 

02 - AMOR DE JUVENTUDE

03 - MULHER NUA

04 - DO OUTRO LADO DA RUA

05 - MENDIGO EM LUA DE MEL 

06 - ENCONTROS IMPRÓPRIOS

07 - LEMBRANÇAS DO PASSADO


BILHETINHO NA CARTEIRA

Procurou por toda a casa a carteira, mas não a achou. Começou a 'voltar' às ações do dia anterior: tinha tomado algumas a mais - por isso a dor de cabeça estava forte (alguns chamavam de ressaca).

O sol estava já alto - quase meio dia. Na noite anterior havia saído com o carro do pai (seu carro tinha sido rebocado por estar estacionado em lugar proibido - e não estava sendo fácil tirá-lo do pátio do guincho: vários documentos sendo pedidos).

No trabalho, naquela manhã, a secretária estranhou a atitude do senhor Ângelo. Nunca o vira agir daquele jeito: quase não parou dentro de sua sala. Reparou que, em certos momentos, até falava sozinho.

- Algum problema, senhor Ângelo?

- Não... Sim... Nada não. (E continuou naquela inquietação.)

Ângela continuou seu trabalho. A hora do almoço chegou - e fez como de costume. Ao retornar estranhou que o senhor Ângelo ainda estava no escritório. Estranhou, também, que o filho de seu Ângelo - o Juninho, não estivesse ainda no escritório - como de costume. Ficou pensativa, mas continuou calada. (Se o senhor Ângelo não quis falar, não era de insistir.)

As horas foram passando, a inquietação do senhor Ângelo aumentando. Dezessete horas o interfone toca - era da portaria. O porteiro anunciava que uma senhora de nome Madalena estava ali e queria falar com o senhor Ângelo. Ângela passa o recado ao senhor Ângelo que, imediatamente, ordena que a deixe entrar. Ângela autoriza o porteiro a deixar que a senhora de nome Madalena entre.

Minutos depois a senhora Madalena está na recepção.

- Mãe, o que a senhora faz aqui?

- Avisa o Ângelo que estou esperando por ele.

Trêmula, Ângela anuncia ao senhor Ângelo a presença da senhora Madalena aguardando-o na recepção.

O senhor Ângelo sai de sua sala e, na recepção, pronuncia calorosamente:

- Que bom que você veio, Madá - estendendo-lhe a mão para cumprimentá-la. Entre, precisamos conversar.

- Não, pode falar aqui mesmo... - disse rispidamente.

- Na frente da Ângela?

- Sim, pois como fui informada, a conversa é sobre ela... Ou não é?

- Sim... Mas vamos conversar lá dentro...

- Não, já prometi que não entro mais aí dentro!

- Está bem. Hoje encontrei um bilhete na carteira do Juninho...

- E daí?

- E daí? É que era um bilhete de amor... Dele para a Ângela...

- Hum...

Minutos de silêncio. Ângela olhava para os dois sem nada entender...

- E você quer que eu faça o quê?

- Madá... Chegou a hora...

- Não! - e o grito negativo ouviu-se longe.

- Como não? Me aponte outra saída...

- Não sei...

- Que conversa é esta, mãe?

O senhor Ângelo aproximou-se de Ângela, e bem baixinho, com voz trêmula, disse:

- O Juninho é seu irmão!

Ângela levantou-se de sua cadeira. Sentou-se novamente, colocou as duas mãos sobre a mesa... Depois apoiou os cotovelos na mesa, segurando a cabeça com as mãos. Olhou para a mãe, e perguntou:

- É verdade, mãe?

Dona Madalena fez afirmativamente com a cabeça.

Ângela levantou-se e deu um forte abraço no pai, e com lágrimas escorrendo pelo rosto, disse:

- Meu pai! Por isso que sempre te amei... Não se preocupe, eu me resolvo com o Juninho...

Madalena e Ângelo se olharam, nada disseram, se entenderam...  

(20/02/2019) PROF. PECE. 


AMOR DA JUVENTUDE

Ela sempre se mostrou uma garota alegre; talvez mais que todas as outras da turma. Passamos três semestres juntos - e chegou o final do Curso.

No segundo semestre, entre altos e baixos, notei que sempre fazia alguma coisa para ser chamada a atenção por mim. Comecei a fazer-me de desentendido - aliás, era o melhor que podia fazer na ocasião.

O tempo - ah! - o Senhor Tempo - é muito impiedoso conosco. Eu era jovem na idade, e na profissão. Ela era uma garota colegial. Impecavelmente levei a minha carreira durante todos os anos que atuei - exerci a profissão que escolhi desde jovem sem cometer deslizes: trabalhar com jovens, nada mais.

Os dias se foram caindo um a um na ampulheta do tempo e nos fez encontrar anos depois: eu, um senhor de mais de meio século (por assim dizer), e ela, uma jovem senhora de trinta anos (ou pouco menos) frente a frente. E agora?

Agora, mais sossegado que nunca, fixei o olhar nela como nunca antes fizera. Baixou os olhos para logo depois erguê-los, e murmurar:

- Quanto tempo, professor!

- Muito!

E ficamos algum tempo conversando. Trocamos números de celular, e-mails e nos despedimos.

Tempos depois recebo dela um e-mail convidando-me para um churrasco em sua casa. Na data oportuna vou para o endereço indicado no e-mail.

Aperto a campainha; segundos depois o portão destrava. Ela, em seguida, veio me receber. Estava maravilhosa!

Acompanhei-a até os fundos da casa e vários amigos (dela - que depois também passaram a ser meus) estavam lá. Papeamos muito, comemos e bebemos.

Já se fazia alta a noite, restavam três convidados e eu. Fiz menção de ir embora e ela puxou-me pelo braço até a cozinha e cochichou-me que ela tinha um presente para me dar, mas que não queria dar na frente dos outros - e que era para eu esperar.

Meia hora depois estávamos a sós. Indaguei sobre o meu presente (pois precisava ir embora). Pediu-me que aguardasse e que ia buscá-lo dentro da casa. Alguns minutos depois escutei a voz dela dizendo que eu entrasse, pois não estava conseguindo trazer.

Entrei e ela estava deslumbrante num baby doll vermelho. Incendiei-me no mesmo instante. Ela abriu os braços, e dos seus lábios vermelhos as palavras borbulharam:

- Vem me amar, que não aguento mais esperar... Foram longos os anos de...

Coloquei os meus dedos sobre os seus lábios (impedindo-a de continuar a frase). Ela fechou os olhos; abracei gostosamente aquele corpo moreno...

O sol já estava alto quando acordamos abraçadinhos na espaçosa cama que adornava o aposento. Horas depois, aqui em casa, coloquei-me a escrever. São memórias que o Senhor Tempo dificilmente apagará.

Dezembro de um ano qualquer. (06/12/2015) PROF. PECE.


MULHER NUA 

Acordou bem cedo - não era normal. Acordara de um sonho, de um pesadelo? Estava nua ou não.... Virou de um lado, virou do outro, e de um lado para o outro: não estava mais no sonho.

Ou estava?

Na penumbra do quarto, apenas a luz fraca do ar condicionado lá no alto, quase nada via, mas não era preciso - sabia onde tudo estava, ela mesma tinha ajeitado cada coisa em seu devido lugar.

Oxigenou o cérebro (como havia aprendido - pois chega a certa idade tudo fica mais lento). Sentou-se na cama, depois virou-se e os pés tocaram o chão. Respirou bem profundo - ergueu as mãos, espreguiçando-se. Colocou-se sobre os pés, caminhou. No banheiro fez as suas primeiras necessidades do dia.

Olhou-se no espelho do armarinho do banheiro - quase não se reconheceu. Parecia faltar alguma coisa... Mas logo desviou o olhar. Na cozinha fez tranquilamente o desjejum: algumas torradas, um copo de suco - tentando manter a forma. Tinha em mente um corpo que não era o seu.

Pensou... Pensou... Levantou-se e, de caminho para o quarto parou em frente ao espelho de quase um metro no corredor e começou a se observar (passara a morar sozinha numa pequena edícula - pequena, mas confortável).

Cabelos negros, longos - e bem cuidados. Quase que dedilhou os dedos pelos cabelos, puxando-os de lado, para frente. Cheirou-os. Macios - acariciou-os sobre os seios. Jogou-os novamente para trás, olhando-se novamente no espelho.

Apesar da idade, se aproximando da casa do cinquenta, sentiu na mão a rigidez dos seios: fartos, firmes - e de dar inveja a muitas mocinhas. Pegou suavemente o bico dos seios entre os dedos - massageando-os. Desceu mais um pouquinho as mãos, acariciando de forma circular a barriga.

Escorregou mais um pouco as mãos e deu conta de que estava no momento de providenciar uma depilação em sua parte íntima. Os pelos estavam avançando, e não gostava. Trazia consigo que, dias mais ou menos, teria um grande amor para compartilhar os seus momentos (e higiene era tudo!), e devia sempre estar pronta. Sentiu o calor emanando de sua vagina, subindo corpo acima. Virou-se para ir ao quarto e, de soslaio viu as suas nádegas - fartas!

No quarto, de repente, se deu conta do que lhe faltava - estava nua! Realidade ou sonho (pesadelo)? Pediu calma a si mesma e fez o percurso para a noite anterior: dormira nua, ou estava sonhando?

Apalpou-se suavemente na penumbra do quarto. Realmente: não era um sonho. Era a primeira vez que se sentia mulher, livre - nua!    - PROF. PECE.


DO OUTRO LADO DA RUA

Sábado, dezessete horas. Sol de verão. Os respingos d'água batia na lataria do veículo, depois nele, refrescando-o.

Carro limpo, agora na garagem. Noite quente, nada melhor que colocar uma cadeira preguiçosa, dessas de nylon, na frente da casa, uma boa música na caixa de som, esperar a hora passar tomando a bebida nacional preferida, e bem gelada.

Já estava na terceira latinha quando a vizinha do outro lado da rua abriu o portão, e trazia junto de si uma cadeira semelhante a que estava sentado. Colocou em frente ao portão - entrou novamente, voltou com uma latinha na mão.

Não se conteve, deu um 'grito', por assim dizer mais alto:

- Ei, vizinha, puxe a cadeira para cá...

Fazia tempo que não conversava com ela, e não foi o tempo que fez a amizade diminuir, mas sim os acontecimentos da vida - de ambos os lados (pois cada um tinha trilhado um caminho).

Ele sentiu no olhar dela uma indecisão, titubeou, mas não resistiu. Levantou-se, pegou a cadeira numa das mãos, a latinha na outra - atravessou a rua.

A música estava numa altura razoável, uma seleção de rock nacional. A conversa foi fluindo... As latinhas ficaram vazias. Ele se levantou e buscou duas - era a quarta latinha dele, a segunda dela.

E mais conversas - talvez colocando os fato, fotos e fofocas em dia. Mais duas latinhas. Mais conversas, mais latinhas. E o som parou. Um olhou para o outro - no olhar dela estava escrito "A casa é sua... Arrume o som", mas ele disse:

- Estás gostando das músicas?

Ela fez afirmativamente com a cabeça, mas não de forma convincente.

- Que tal a gente mudar um pouco o estilo? - disse ele.

- Pode ser...

Levantou-se e caminhou uns dez passos adentro, retornou:

- Não quer entrar e escolher?

Ela sabia da armadilha que podia estar entrando, e respondeu:

- Não deveria, mas vou entrar...

Ela se levantou. Ele pegou as duas cadeiras e colocou-as dentro do quintal, fechou o portão.

Na área do fundo, sobre uma pequena mesa plástica estilo de bar, vários 'pen drives'. Ela escolheu um com seleção de músicas lentas. Ele buscou mais duas latinhas, aproximou-se dela e abriu uma, estendendo a ela a latinha. Ela pegou a latinha - segurando junto a mão dele. Aproveitando a deixa, aproximando ainda mais dela, beijando-a suavemente no rosto.

A música lenta era convidativa. Começaram a dançar agarradinhos. Nos intervalos novas bebericadas - ele apagou um pouco das luzes, deixando na penumbra.

Belas canções tocaram durante um belo pedaço da noite. Eles continuavam a dançar. Poucas palavras - às vezes sussurradas. Beijos, beijos e mais beijos... Carícias e mais carícias... E a noite passou velozmente para o casal que acordou agarradinhos... (Prof. Pece/2019)


MENDIGO EM LUA DE MEL

Quando rondava a Praça em busca de um abrigo, algo lhe aconteceu. Estava cansado, com fome, com sede; faltava-lhe calor humano. Rondou um pouco mais e escolheu um banco menos sujo para passar a noite. Seria mais uma noite triste se...

Fora expulso da Catedral: Mendigo nenhum pode dormir aqui. - dissera-lhe o sacristão. Todo sujo, resolveu mergulhar na piscina e tomar um belo banho - o chafariz seria uma boa companhia para passar a hora - mas o guarda-praça impediu-o. Fora sua sorte. A noite fresca podia trazer-lhe alguma doença, ou um resfriado.

Deu mais uma volta na praça e disfarçadamente lavou os pés e o rosto nas águas da piscina, tomou um pouco de água fresca do chafariz e encaminhou-se para o banco que escolhera para passar a noite.

Sentou-se e começou a observar.

Longe dali, do outro lado da Praça, passava uma senhora com uma criança. Esta, toda corada, de lindas roupas e sorriso largo. Filosofou: 'como a vida é traiçoeira!'

Continuou a sondar. Na Catedral, centro da cidade, ricas senhoras chegavam em carros do ano, de marcas internacionais, de última geração, alguns não conhecia por mais observador que era. Quase meia hora ali sentado. Cada minuto um carro a mais. Senhores pomposos cumprimentavam as damas orgulhosamente, orgulhosos por estarem ali fazendo parte da alta sociedade. Por fim um luxuoso carro, tipo carruagem, para à porta da Catedral. Era a noiva.

Ficou todo orgulhoso por assistir a união, embora que de fora, de um casal que se amavam. Sua alegria subiu às nuvens, mas logo sumiu. Lembrou de sua miséria. Fotógrafos se aproximavam. Câmeras foram acesas - o relógio marcava 18 horas e 30 minutos - todos levantaram os olhos para o ponto culminante: a noiva!

Voltou ao passado, sua vida. Oh! Seu eterno amor! Lembranças dolorosas de um amor que perdera depois de três anos de luta. Filosofou outra vez.

Lembranças de momentos felizes que passaram. Ele pobre, mas trabalhador. Quando a conheceu, ela cursava o colegial e ele o segundo ano de Direito. Trabalhava em escritório contábil e ela de secretária num consultório médico. Viviam felizes. Duas vezes por mês comiam pizza, alguns filmes no cinema e outros em casa. Época de prova: caderno e livros até alta madrugada - notas ótimas.

Ele terceiro ano de Direito. Ela o primeiro ano de Direito.

Último ano de Direito, ela o segundo. Alegria. Agora auxiliava um escritório de advocacia. Ela secretariava um escritório de um fazendeiro.

Sinos badalavam a hora: dezoito horas e quarenta e cinco minutos. Sinos marcavam o momento.

Logo mais os pombinhos sairiam.

Sua vida miserável de andante, de um maldito da vida, tudo, tudo mesmo por causa do fogo que se chama amor. Perdera o último exame do ano quando recebera um telefonema de anúncio de término de namoro. Tristeza, choro, falta de controle... e, agora, andante da vida.

Agora, de doutor a mendigo. Decepção total!

Com baile marcado para vinte de dezembro - vinte de dezembro: pegou no caminho e tornou andante - bailante da vida.

Olhou a alta torre: o relógio marcava dezenove horas e alguns minutos. Não se conteve. Aproximou-se da frente da Catedral. O padre dizia as últimas palavras, imaginou ser ele o noivo: fugiu a mente. Buscou no pensamento a que foi, ou melhor, a sua amada. Quase quinhentos quilômetros os separavam. Ele, pelos caminhos da vida, cruzava o interior e ela na capital; talvez casada e mãe de filhos. Rica, pois lhe arrumaram um bom marido. A família assim queria.

Um homem todo de terno fino estaciona o luxuoso carro e aguarda a saída do casal.

Os olhares voltam-se para ele: barbas a fazer, sapatos rotos e encardidos pelo tempo, calça e camisa que não se distinguiam as cores, óculos de lentes embaçadas, e - ninguém esperava - um pensamento de dar aos noivos o seu voto de felicidades.

Os cumprimentos de felicidade já estavam na saída da Catedral. Todos fazendo o seu dever. Ele também queria desejar felicidades ao jovem casal.

O jovem casal desce as escadas ladeados por cavalheiros e damas de alto nível. O mendigo aproxima-se.

Atravessa a rua que os separa. Caminha lentamente.

Um zum-zum-zum toma conta de todos. Ninguém move uma palavra para detê-lo. De cabeça baixa, humildemente dirige-se ao jovem casal.

Todos imóveis. Ajoelha-se frente aos noivos como se fossem reis, não encontra coragem para erguer os olhos e falar olho no olho.

Tenta.

Movimenta os lábios e nada é ouvido. Busca em si o seu último desejo que não fora cumprido: num rápido segundo relembra o golpe, sua vida, seu futuro... Traição!

Tenta e consegue.

- Desejo-lhes uma vida de felicidades. Felicidades mil. Deus os abençoe.

Beija os pés da noiva, ergue-se de soslaio para encontrar os olhos do casal e... é ouvido:

- Meu eterno amor!

Todos tentaram segurar a noiva. Foi em vão. A loucura tomou conta dela. Ajoelhou-se, após dizer estas palavras, e beijou o mendigo, abraçando-o fortemente.

- Amor, o que é isso? - desespera-se o noivo.

- Nunca amei você! Amo esse rapaz! - disse aos gritos.

- Como?

- Minha família te ama!

Os olhares espantosos seguiram o noivo que se atirou nos braços da mãe. No outro dia, as manchetes dos jornais diziam: Mendigo passa a noite em lua-de-mel, Mendigo em hotel cinco estrelas, e, por nada menos, dois funerais: noivo suicida-se, mãe da noiva sofre ataque cardíaco e morre.

Mendigo reconstitui sua felicidade. PROF. PECE. 


ENCONTROS IMPRÓPRIOS

O som da campainha tocou acordando todos da casa. O chefe da casa, estranhando pelo horário, observou pelo 'olho mágico' da porta a figura humana na penumbra da madrugada. Depois de alguns segundos novo toque da campainha; reconheceu a figura humana que estava do outro lado.

Abriu a porta e faz sinal para que a figura humana entre. A mulher fez acontecer o convite do chefe da casa. Os seus passos não eram firmes, pareciam duvidosos.

Do quarto a patroa da casa em camisola, ainda sentada na cama, perguntou ao chefe da casa quem batia à porta.

- É Elis.

As palavras da patroa da casa soaram e não foram entendidas. Ou não foram, por assim dizer, colocadas em prática pelo chefe da casa.

Elis adentrou, já conhecia o caminho. O longo corredor foi lentamente percorrido. Em si não o faria jamais. A necessidade conduziu-a até ali. Aprendera que certas coisas, por mais erradas que pareciam, alguma hora eram corretas. Não se levava em conta a trajetória, mas o momento. No final havia uma porta.

A porta foi fechada pelo chefe da casa que observou atentamente os lentos passos de Elis. Do quarto ainda se podia ouvir - agora claramente - as lamúrias da patroa da casa.

No final do corredor Elis parou e repentinamente soltou os longos cabelos, colocou as mãos na maçaneta e abriu a porta. A claridade da lua que havia muito invadido o pequeno aposento fez luz que permitiu Elis chegar com destreza os interruptores.

O chefe da casa que até agora não dera nenhum passo começou a andar. Sabia que Elis nunca fechava a porta por dentro.

As lamúrias continuaram. O chefe da casa, agora ao lado da patroa da casa, buscava respostas nas solicitudes da vida. Da mulher que tinha naquela noite hospedada em sua casa quase nada sabia, a não ser o que sua própria patroa lhe dissera certa vez que chegara de viagem e encontrara a estranha em casa.

Era alta madrugada, a roda de prata já fazia o seu caminho rumo ao descanso. Abriu lentamente a porta que dava para a rua. Fechou-a novamente, levou a bolsa que trazia a tiracolo até a metade do corredor. Estranhou a luz no final do corredor. A porta entreaberta deixava uma nesga de luz sobre o piso e pela parede branca do mesmo.

A patroa, com voz meiga, comunicou que havia hospede em casa. Beija-a na cama. O chefe da casa dirigiu-se para o banho. A curiosidade por conhecer a desconhecida incitou-o a alguns passos em direção à luz.

Já sabia o que havia por trás daquela porta. Agora trancada. Outrora entreaberta. Agora chamativa; outrora curiosidade a descobrir.

A bolsa a tiracolo desfeita. O banho. A água fria caindo-lhe pelo corpo esfriava-lhe os ânimos. Quem seria a hóspede?

As lamúrias continuavam - mas de nada adiantava naquele adiantado estado das coisas. Havia trazido com as suas próprias mãos. Buscara a sua própria cruz.

Sentado ao lado de tantas lamúrias e lá no fundo o silêncio reinava. Nunca trocara uma palavra se quer com a desconhecida. Apenas, quando amanhecia, ao entrar na cozinha, dizia um 'bom dia' que nunca fora retribuído. A ilustre desconhecida era assim: calada; cálida, suave, quente.

Como naquela primeira manhã que não tivera resposta de sua breve apresentação, passou apenas a observar, a cultuar o silêncio; os traços de Elis eram o contraste em vista da patroa da casa. Esta, de traços elegantes, o charme da mulata brasileira. A sensualidade, a beleza. Aquela, o oposto: de pequena estatura.

Elis naquela noite fizera o mesmo ritual. Alguns minutos depois a porta no final do corredor se abriu. O chefe da casa observou atentamente o barulho. Sabia os passos que seriam tomados: a água do chuveiro começou a cair. As lamúrias continuavam, continuavam.

A água escorria pelo corpo de Elis - lavava-lhe, também, a alma. O ralo do banheiro sugava a água, levava-a pelo cano para a rede de esgoto que passava na frente da casa, mas o percurso era feito ao lado do quarto do chefe da casa. Parecia evaporar, firmava-se na pele dos anfitriões.

Elis, cada vez mais leve, mais solta. A patroa da casa cada vez mais carregada. Mais carregada. Os pés já não se moviam sozinhos. Precisavam ser carregados. A alma lhe fora, como dizer, tirada.

Meia hora depois o chefe da casa colocou entre as mãos da murmurante uma xícara de leite quente com canela. Elis também recebeu o seu. Este, porém, fora colocada no criado-mudo esquerda da cama.

A patroa da casa, ainda de mãos firmes que lhe restavam, levou o leite à boca. A fumaça a exalar canela subia-lhe pelas narinas. Podia não parecer, mas era a única bebida que não lhe fazia tanto mal. O chefe da casa retornara do quarto de Elis. Nada mais que dez minutos perturbadores para a patroa da casa. Ele transpirava muito.

Elis do espelho que estava a pentear os cabelos, pelos cantos dos olhos vê claramente nos olhos do chefe da casa a sua loucura. Ela, também, o provocava. Provocava-o desde a sua chegada àquela casa. Seus hábitos eram contundentes demais para sua idade, melhor, com o lugar que lhe dera abrigo. Trajava sempre roupas curtas, transparentes. Roupas que causavam desejos.

Sentados, lado a lado, e o leite a evaporar o cheiro suave de uma especiaria ia diminuindo no copo. A vida, depois de longos anos traçava destinos cruéis. Três vidas. Realidades desconhecidas, espíritos audaciosos.

Elis, em roupas íntimas, já de volta ao quarto, quando um vento forte lhe soprou às costas. Era um sinal. Sinal não bem-vindo. Passou.

O chefe da casa lembrava, não o primeiro dia - que não teve coragem de olhar pela porta entreaberta - mas de uma calorosa madrugada em que a casa estava vazia. Sabia que estava vazia porque por motivos adversos de família ninguém ficara na casa - apenas um recado lhe fora enviado: viagem urgente por causa da doença da falecida mãe da patroa da casa. Sabia que a casa estaria vazia. Porém, a luz no fim do corredor naquela noite era maior.

O leite já não mais havia no copo. O último gole fora saboreado como se fosse uma pérola rara. E era!

Ao aproximar-se da porta entreaberta o corpo alvo de Elis repousava. O tempo passava e ele, parado na porta observava-a. Deleitou-se nas pequenas curvas que seus olhos antes imaginara. Elis aconchegava-se mais, posicionava-se de frente para o espelho, de costas para a porta. Repousava num sono quase que justo.

Retornou; o chefe da casa colocou lentamente o leite com canela no fogo. Quente, colocou-o novamente sobre o criado-mudo. Olhou, mais de perto, as curvas que havia muito lhe provocava. Vagarosamente saiu do quarto; pensamentos pecaminosos. Olhou novamente para trás.

Subitamente o copo lhe caiu das mãos rolando pelo seu colo, pelas suas pernas e estardalhando-se no chão. O susto traiu os pensamentos do chefe da casa que vê subitamente a patroa da casa se pôr de pé.

Observou o corpo de Elis na quase inércia - apenas o ato de respirar a lhe mexer o corpo. Banho, só um banho gelado lhe acalmaria a carne e o espírito naquele momento. Queria que a água lavasse naquele momento até a sua alma; lavasse a sua alma da traição - mesmo que em pensamentos.

De pé, lentamente caminhou para o corredor - uma da frente para o fundo, outra do fundo para a frente. No meio do corredor se encontraram. Uma apenas em camisola, a outra em roupas íntimas: se olham. Se olham, se miram!

Desligou o chuveiro. A toalha, embora felpuda, parecia áspera a deslizar pelo seu corpo. Para na porta: seguir para seu quarto ou para a porta entreaberta no final do corredor? A tentação venceu-o momentaneamente. Parou no limiar da porta. Elis estava agora de bruços. Os cabelos soltos esparramados pelo corpo e colchão faziam um único visual. A nudez, a bela nudez feminina ali em sua casa o chamava. Resistiu.

Subitamente um clarão eclodiu no céu. Um trovão seguiu-se. A escuridão tomou conta do lugar. A lua já não mandava o seu belo fulgor. Segundos depois o barulho choco de corpo (ou corpos) tombando ao chão.

O chefe da casa partiu em direção oposta. Nu. Limpo de tocar as mãos no que não lhe pertencia. Traição?

Elis, sossegadamente acordou quando o dia amanheceu e percebeu o copo de leite com canela frio sobre o criado-mudo. Dirigiu-se nua para a sala. O chefe da casa já não estava mais. Estava só. Esfriou-lhe a espinha. Mas o que seria que a levava quinzenalmente àquela casa?

Sem muito a fazer diante de total escuridão - e ainda sentado na cama - ouvia apenas os sons. Alguns minutos se passaram e a luz voltou a figurar no corredor através da porta entreaberta.

Gritou! Ecoou o som no universo. Ambas no chão. Corações partidos, dilacerados, parados. Atentou para os cadáveres tombados no chão: Elis - e a patroa da casa.

Revolveu-os cada um para o seu leito. A patroa estendida na cama. Elis estendida na cama. A única vez que tocara: na morte.

Os homens do poder adentraram a casa e constataram a causa correta da morte: o furor! Furor da natureza; o furor dos homens!

O chefe da casa todas as noites vagava pelo corredor, vagava lentamente pelo corredor. - PROF. PECE. 


LEMBRANÇAS DO PASSADO

Sentada na praça Bela via a vida passar. Sentia que perdera tempo. E não era o tempo agora, era o vivido.

Mesmo em seus belos dias sempre fora cercada por seres cautelosos podando-lhe as arestas da vida. Mas a necessidade de viver e o pouco tempo que lhe restava, colocava - mesmo que por derradeiro empreendimento - o desejo de viver.

Viver intensamente!

Acompanhada como sempre fora nos últimos dez anos pela irmã, abandona-a e na esperança do milagre da vida, nos seus noventa anos, vive!

A vida, como lhe dissera a vidente em sua última consulta, oferecia nada mais que seis meses de vida. Restara-lhe, ainda, pouco mais de três meses. Irmã e companheira deixara de lado, Bela deixara também a velha casa da família para viver intensamente seus últimos dias.

Bela como sempre fora bela e ainda conservava, pensava altamente nos casos de amor que fora podada em sua juventude. Os transeuntes passavam, sentavam, levantavam; pombos - que infestavam nojentamente a praça, alçavam pequenos voos na busca de grãos deixados nos frisos dos mosaicos. A vida passava. Bela, sempre bela, enchia-se a cada passo que ouvia, a cada murmúrio deixado no ar, e tomava fôlego.

Como quisera ter filhos!

Amante não amada, Bela viveu as sete últimas décadas a remoer os ares que o amor deixara efervescendo no coração. E com ele os ideais de família, de lar.

Voos rasantes quisera fazer - como os que observava agora, mas como um pássaro na gaiola, as ciladas que a vida lhe proporcionara puseram seus ideais em segundo, terceiro plano - nunca realizados.

Só. Tentando ser independente nos poucos dias que lhe restavam, Bela impõe e decide viver ardentemente um sentimento de família - o de amor, de amar e ser amada.

Não muito longe do banco que escolhera naquela tarde um senhor de barba branca observava a vida por um prisma diferente.

Semblante triste, ar cansado, rarefeito. O senhor de barba branca não conseguia notar os voos rasantes dos pombos, nem os mesmos catarem grãos nos frisos dos mosaicos, nem a vida passar.

Alheio a tudo.

Bela observava-o. Captava a sua morbidez. E lentamente - para os quase excluídos da vida ativa - o relógio passava. Lentamente.

Lentamente!

O mundo não parecia ser real. Bela voltava à juventude, aos seus vinte anos onde as arestas da vida lhe fora podada; o tempo. Cruel, implacável, jamais voltaria.

O homem de barba branca se fez moço; barba azulada, cabelos bem aparados, de terno e gravata-borboleta lhe estendia as mãos. Bela viajava através duma janela no tempo.

Ah!

Bela, a bela Bela viajava no túnel do tempo! Cabelos claros e pele macia, num longo branco, estendia as mãos...

O som ecoou ao lado...

A janela se fechou.

Lentamente Bela voltou ao agora. A vida corria! O tempo, perseguido pelo tempo, vira perseguidor do tempo que é perseguido...

Trovões ecoavam no ar. Bela observava. Levantou-se. Não há mais pombos a dar voos rasantes e nem a buscar grãos entre os frisos dos mosaicos.

O homem de barba branca ainda estava lá. Ainda estava lá, solitário. Só! O homem que parecia alheio a tudo ainda estava lá.

Em lentos passos Bela conseguiu chegar ao homem de barba branca.

Frente a frente, Bela ficou imóvel. Ficou também alheia a tudo. O homem de barba branca - o homem de terno e gravata-borboleta. Ele! No túnel do tempo.

Olhos abertos, fixos; imóvel, ambos.

Bela retomou a respiração e procurou sinais vitais depois daquelas longas sete décadas. Nada!

Sentou-se ao lado: o túnel do tempo. Viajou. Filhos. Netos. Família! Família! Envelhecimento a dois. A canção rítmica do amor ao toque do coração.

Bela, que de bela se desfez, na vida real não suportou, ou a vidente errara: ali ficou junto ao homem, junto ao homem de terno e gravata-borboleta, junto ao homem de barba branca.  - PROF. PECE. 


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